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                                        chICas 

 

 

   

  Por sete décadas depois de sua morte, os historiadores da cultura letrada se esqueceram de Chica da Silva. O primeiro relato a seu respeito, escrito por um advogado de descendentes de Chica, Joaquim Felício dos Santos, foi publicado em um jornal entre 1862 e 1864. Nesse relato, Chica era dominadora, feia e sem atrativos. Era incompreensível a paixão de João Fernandes de Oliveira, o poderosíssimo homem que a comprou e libertou e depois, na prática, casou com ela. Nesse relato, como tantos outros, sua história parece impossível, pois quando se conheceram ela era escrava e ele chegou ao Brasil como detentor do contrato da coroa portuguesa para minerar diamantes.

  Passaram-se mais nove décadas e, no Romanceiro da Inconfidência (1953) de Cecília Meireles, Chica aparece como uma beleza natural, semelhante à da paisagem. Ela é associada às luzes, ao brilho e aos diamantes:

     Nem Santa Ifigênia

     Toda em festa acesa

     Brilha mais que a negra

     Na sua riqueza.

  Só em 1963, com o desfile campeão de “Chica

da Silva” da escola de samba Acadêmicos do

Salgueiro, se assistiu o primeiro relato

sobre ela em que sua subjetividade aparece.

      O contratador João Fernandes de Oliveira

      A comprou para ser sua companheira

      E a mulata, que era escrava,

      Sentiu forte transformação

      Trocando o gemido da senzala

      Pela fidalguia do salão.

  Foi o desfile do Salgueiro que inspirou Cacá Diegues a fazer o filme homônimo em 1976, com outra abordagem ainda, mais próxima da versão do século XIX, mas com uma dose de pornochanchada. Chica ainda foi tema de peças de teatro, romances, sucesso em 1985 de Boney M., banda de disco afro-caribenha baseada em Alemanha, e uma telenovela. De tão viva no imaginário, reapareceu em um trote universitário em 2013, na Faculdade de Direito da UFMG, em que uma caloura foi pintada de preto e acorrentada, com uma placa com “Caloura Chica da Silva” no pescoço.

  A Chica que inspirou essas diversas histórias, cada uma com seus valores e compreensões da época, nasceu entre 1731 e 1735, segundo a historiadora Júnia Ferreira Furtado, autora de Chica da Silva e o contratador de diamantes (2003), o primeiro relato baseado em documentos históricos. Em 1749 ela já tinha sido vendida para um médico, Manuel Pires Sardinha, e dois anos depois teve seu primeiro filho, batizado com o nome de seu dono. Em agosto de 1753 chegou João Fernandes, que a comprou, alforriando-a no Natal do mesmo ano. Conviveram 17 anos como marido e mulher e tiveram 13 filhos antes de João Fernandes de Oliveira voltar a Portugal em

1770 para cuidar de uma disputa em torno da herança de seu pai, aproveitando para agir a favor dos interesses dos filhos homens, inclusive o primogénito de Chica. Morreu em Lisboa em 1779.

  Chica da Silva morreu em 1796, em Diamantina, e foi enterrada na Igreja São Francisco de Assis. Seus restos mortais - naturalmente mumificados – foram descobertos na reforma da igreja, em 1917. O coveiro se assustou com o que parecia um saco de ossos, jogando-o onde se jogava os esqueletos de animais selvagens. A criação de mais essa história é incompreensível hoje e provavelmente o seria durante a vida de Chica. Existiam mulheres de cor libertas, no século XVIII mineiro, que negociavam certa independência; e era comum homens brancos manterem relações conjugais com escravas, muitas vezes alforriando-as, mas geralmente no leito da morte ou, até, bem depois. Chica da Silva foi excepcional, segundo Júnia Ferreira Furtado, porque foi libertada quase imediatamente depois da compra. Foi excepcional porque, como diz o samba, trocou o gemido da senzala pela fidalguia do salão, superou a barreira da cor e do cativeiro zombou.

 

 

Liv Sovik

15 de abril de 2015

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